domingo, 2 de outubro de 2011

Do porquê de as palavras nascerem


Quando a poesia já não surte o efeito e a metáfora fica vazia recorremos a outras maneiras de reconstruir a vida. A escrita é feita com sangue, com lágrimas de dor ou alegria. As palavras são construídas com as células perdidas em nosso ser.
Recriamos a vida, os sentimentos e as descobertas talhando a madeira da língua pincelando a tela em branco com letras unidas, formando enormes paisagens de sentido. A semântica é uma ciência precisa, o texto ganha sinestesia, hipérboles e ironias, ou apenas se mantém em sua fria objetividade.
A palavra compartilhada é viva, foge ao controle do autor, é uma arte sem dono, sem limites, sem pudores, pois se faz faceira, brejeira sem pedir permissão a quem lhe deu a vida. Mais que isso, palavra é necessidade, é vício, é luta constante para quem a quer dominar. É a maneira de exorcizar os medos, de expor a idéias, de repensar o mundo.
Escrevemos porque escrever é o que nos transforma, poderíamos cantar ou dançar, mas apenas escrevemos. Escrevemos sobre o prazer de ver a bailarina rodopiando na órbita do palco, sobre o prazer de ser a bailarina que rodopia, sobre o amor que sente a bailarina pela dança. Quando escrevemos temos apenas o limite do fim da página, mas sempre temos páginas em branco.
O prazer de escrever é o prazer de esvaziar a mente, o coração, de oferecer um presente à vida, algo atemporal, saber que o sentimento será despertado, espalhado como vírus pelas folhas propagadas. Escrevemos porque somos egoístas, queremos que o mundo sinta o que sentimos, desejamos sentir o que o mundo sente e escrevemos todo o sentir que a mente é capaz e que o corpo talvez não possa.
Todo escritor é na verdade uma página em branco, escrever é o que o preenche, é sua vida, sua respiração, seu amor.


Janelas abertas


O amor foi arrancado a facadas de seu peito por aquele a quem ela o entregara. A dor vivida foi esmagadora. Viveu a escuridão, o medo, o vazio de uma inexistência medicada por psiquiatras. Trancou as janelas e a porta da vida. Teve tanto medo que um dia se matou.
Ficou morta por exatos cinco dias e para seu próprio espanto acordou. Mas quem morreu naquele ato desesperado foi o medo, o vazio, a escuridão e junto com eles o laudo do psiquiatra. Percebeu que não adiantaria chorar nunca seria ouvida, que lágrimas não constroem história.
Sacudiu a poeira, voltou a sentir o vento no rosto, a enxergar as cores vivas e redescobriu a liberdade. Abriu as janelas e transformou a dor em palavras, retirou os medos com precisão cirúrgica, transformou cada um em versos e estrofes. Sua janela escancarada foi mostrada a todos, foi fotografada e festejada. Enterrava ali o amor assassinado. As janelas continuarão abertas, pois fechá-las é aprisionar-se novamente e agora já não pode viver sem o sol.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Namorar, sob os céus de São Paulo


Sob o céu da cidade os namorados se encontram em noites enluaradas, chuvosas ou frias. Para os namorados não importa como está o céu, não importa nem mesmo como está a cidade. O caos pode ter tomado conta, o congestionamento batido o recorde do ano. Podem estar no metrô, em plena Estação às 18h que nada os separa. Se estão nas Marginais, o congestionamento é tempo a mais para beijos e abraços.
Pode haver manifestações na Paulista, jogo do Corinthians ou mesmo Virada Cultural, que nada será importante. A programação significará mais tempo juntos, ou separados. Podem estar sob o céu acinzentado no Parque Ibirapuera, sob as estrelas no Pico do Jaraguá ou sob o céu refletido nas águas da Guarapiranga, mas o único brilho que verão será o dos olhos um do outro. Podem até mesmo não ver céu nenhum escondidos em alguma cadeira do Teatro Municipal, ou nos corredores do MASP, e mesmo ali não verão Renoir ou Pablo Picasso, passarão pelos corredores, do Barroco ao Contemporâneo, sem notar as cores, texturas ou pinceladas das obras. Aos namorados obras não são importantes, podem ser obras de arte, obras civis, ou mesmo obras literárias, a verdadeira arte que querem é a de estarem juntos admirando-se mutuamente.
Contam os minutos que estão longe, agradecendo a Einstein por compreendê-los. Cada segundo é uma década a separá-los e juntos horas tornam-se segundos. Amam-se a casa momento compreendendo que o amanhã pode não vir, que o agora é o que realmente importa.
Os namorados encontram-se sob o céu chuvoso, molhados e friorentos, e estarão felizes, radiantes como em qualquer dia primaveril. Encontram-se na Paulista, na Luz ou na Vila Madalena. Não importa o clima ou o lugar, só vêem apenas um ao outro, suas cores, suas texturas, seus sorrisos.
Andam entre obras, sob a chuva, ou sob o sol. Se há frio aquecem-se com o calor de seus corpos. Se há barulho, ouvem apenas o som de suas vozes. Conversam sobre tudo e sobre o nada, pois querem apenas ouvir-se, verem-se. O assunto será sempre o mesmo, o que sentem um pelo outro
Aos namorados importa estarem juntos, enamorados, apaixonados. Amantes de si mesmos, acham-se entre os edifícios, nos corredores dos shoppings, nas multidões de shows. Percebem-se a distâncias enormes apenas pelo contorno, tão seu, tão familiar e amado. Acham-se pelo cheiro mesmo entre milhares, pois é único o cheiro que ama e que procura.
Namorados encontram-se sob os céus de São Paulo todos os dias...

sábado, 24 de setembro de 2011

Crônica de Amor


Passaram-se cinquenta anos desde que o vazio começou a aumentar, sempre acreditei que um dia seria devorada por ele e desapareceria da terra, assim, sem deixar vestígios ou um corpo inerte a ser decomposto pelos vermes, talvez aqueles que a anos me devoram lentamente.
Esta manhã o seu crescimento foi imenso, quando acordei imaginei não mais existir, fiquei muito tempo em frente ao espelho tentando ver o momento em que meu sumiço ocorreria e tentei me lembrar de como tudo começou.
Eu era uma jovem perdida em busca de algo que mudasse minha vida, foi quando ele surgiu, não me lembro de onde saiu, acho que brotou do chão, só sei que um dia se materializou na minha frente... e desde então tudo mudou.
Quando seu olhar cruzou o meu, me senti despida, completamente nua diante daquele estranho. Há como não desejar um homem que lhe despe com o olhar, um olhar de tigre em momento de caça diante de uma presa frágil e indefesa. A diferença é que nunca fui indefesa, talvez um pouco frágil. Lhe desejei, como até então homem nenhum havia desejado, uma vontade imensa de despi-lo como fazia comigo, deixá-lo completamente nu. Tocar sua barba, seus cabelos, sentir o hálito, o gosto, o cheiro, e principalmente seu membro hirto penetrando minhas carnes e arrancando suspiros prolongados, doces espasmos finais que meu corpo emitiria ao se sentir satisfeito. Todos os desejos se apossaram de mim, e como a caça que resolve revidar iniciei meu caminho, sem volta, de sedução.
Não esperei muito para ter o que queria, foi numa manhã de sábado. Aos vinte e quatro anos era uma mulher decidida com uma sexualidade aflorada e resolvida, nunca fui bela, mas possuía meus encantos. Como nos romances, era uma bela manhã de sol, após dias de frio.
Ah! Momento sublime. O que encontrei foi algo para o qual não havia me preparado, e eu, que era caçadora, tornei-me caça novamente. Como amei, amei como uma louca, não comia, não dormia, trancafiei-me em um mutismo sem fim, não queria que palavras tirassem de minha boca o seu sabor. Se meus hábitos de higiene fossem um pouco mais lentos talvez não teria me lavado, queria permanecer com seu suor impregnado em minha pele.
Durante seis dias e seis noites minha vida resumiu-se a pensar nele, nossas palavras nestes dias foram por telefone, curtas, carregadas de tensão. Eu cobrava a todo instante um novo encontro que ocorreu no sétimo dia. E no sétimo dia Deus descansou, eu amei. Amei com toda minha força, tanto e tanto e tanto. Quando os espasmos se apossaram do meu corpo o coração deixou de bater por minutos inteiros. E então tudo começou.
Lembro-me que no final ele perguntou o que acontecera, minha fisionomia estava diferente, naquele momento eu não sabia.
Creio um dia haver lido em algum lugar que temos um centelha para amar que devemos acendê-la e mante-la acesa. Minha centelha naqueles dias entrou em combustão.
Quando cheguei em casa notei que algo estranho ocorria, sentia frio, como se estivesse vazia por dentro. E estava.
Não vejo mais as minhas mãos.